Falta muito p’ra chegar?...
Escrito por Eduardo Sá Quinta, 16 Outubro 2014 | Visto - 34199
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A escola faz mal às crianças quando permite que os jardins de infância sejam pré-escola. Crónica de Eduardo Sá.
A escola faz mal às crianças... se ela for uma “linha de montagem” de “produtos normalizados”; à margem da imaginação, da criatividade e, sobretudo, da singularidade.
A escola faz mal às crianças quando se chama a um berçário uma... escolinha e se imagina que a “vida escolar” comece aí. E se permite (sem nada se fazer para o alterar) que, desde muito cedo, haja crianças confiadas a berçários. Por causa dos técnicos que lá estão? De modo algum! Porque as crianças são obrigadas a ter ritmos e rotinas muito pouco personalizados. Se ligar a biologia nervosa, as incidências da sua história de vida e os ritmos dos pais já não é fácil, imaginando que eles sejam capazes de se descentrar de si próprios, ligar tudo isto com uma uniformidade dos ritmos da maioria dos berçários (com tempos idênticos para as crianças se alimentarem, para dormirem ou para serem estimulados) faz mal aos bebés. Num país amigo das crianças, e considerando o bem precioso que representam, só se devia entrar numa... escolinha dos dois para os três anos. Até lá, seja a mãe ou o pai − com possibilidade de terem licenças de parentalidade mais alargadas ou trabalho em tempo parcial − sejam os avós (mesmo que, para tanto, sejam apoiados pela segurança social), seja uma ama (de preferência, em casa dos pais), tudo é melhor para a saúde do bebé. Passar dias e dias deitado, olhando para o ar − na verdade, olhando para o mesmo mobile que dá voltas e voltas diante do seu nariz − torna cada bebé um bocadinho mais estúpido do que quando lá entrou.
A escola faz mal às crianças quando permite que se distinga, todos os dias, a educação infantil do ensino obrigatório, e se permite que os jardins de infância não sejam, tendencialmemte, gratuitos e para todos os meninos. Mas faz, ainda, pior quando permite que haja infantários da rede pública, que funcionem, há anos a fio, em contentores, e infantários, muito exclusivos, onde estão oito, dez ou 12 crianças, no total, e onde os pais, privando-os do bem precioso da vida (na sua generosidade inclusiva), pagam 1500, 2000 e 2500€ por mês por uma exclusividade que debilita o crescimento e as crianças.
A escola faz mal às crianças quando permite que os jardins de infância sejam pré-escola. É por isso que eu acho que devia ser proibido ensinar a ler e a escrever no jardim de infância! Mas, então, para que é que serve um jardim de infância? Serve para as crianças se socializarem. E serve para alimentarem a surpresa de transformar uma educadora numa... quase-mãe.
Serve para alimentar a educação física como se fosse uma escadinha: indo da tonicidade ao equilíbrio, e daí ao movimento, à coordenação motora, ao ritmo, à expressividade, ao brincar, ao jogo e, naturalmente, à relação. Tudo isso ajuda a perceber que todos os meninos ensinados a domesticar o corpo não sabem pensar e vivem fugindo... da vida.
O jardim de infância serve, também − tenho-o dito − para a educação visual. Ajuda a distinguir olhar e ver; ajuda a ir do garatujo ao rabisco e do rabisco ao traço; ajuda a ir do corpo (com que se desenha e com que se pinta) ao pensamento (e vice-versa); ajuda a ir do sentir ao representar; e ajuda a criar imagens e símbolos (para que sejam desconstruídos, a seguir). O jardim de infância ajuda a perceber que quem não sabe desenhar não sabe escrever!
O jardim de infância serve, também, para a educação musical. Para ir do som à harmonia dos sons e, com isso, para ir da sensibilidade à expressão musical e dela aos sons com forma (que são as letras) e aos sons com legendas que são as palavras. A música é a única Torre de Babel do mundo: sem a música as crianças tornam-se menos aptas para a língua materna. E sem língua materna, versátil e expressiva, nunca organizam um ritmo do género “sente, discorre e faz” sem o qual o pensamento deixa de pensar sobre si e sobre o mundo. E adoece!
O jardim de infância serve para brincar. Porque quem não brinca fica fechado (e desconfiado) no seu mundo e, em vez de ficar amigo da diferença (sem a qual nunca se cresce) fica xenófobo e arrogante, mais agarrado ao passado do que amigo do futuro.
O jardim de infância serve para escutar histórias e para as reproduzir; e para as reconstruir; e para as dramatizar; e para fazer com que elas ganhem vida em nós e, assim, servem para ir do drama à sátira ou à comédia mas, sobretudo, servem para ir da intriga à surpresa, à empatia, à comunhão e ao entusiasmo.
O jardim de infância serve, ainda, para conversar. É por isso que as crianças − todas as crianças (!) − para serem saudáveis, têm de ser ruidosas na sala de aula e têm, de fazer uma algazarra, no recreio. E têm de chocar umas com as outras, têm de se sujar, e de transpirar, com abundância. Escolas com poucos recreios ou com maus recreios são escolas com necessidades educativas especiais e são escolas amigas do insucesso escolar!!! Do mesmo modo, todas as escolas, seja qual for o grau de ensino, que não tenham um quadro de honra para os alunos faladores, não são uma escola: são um lugar onde se transformam crianças saudáveis em pessoas sonsas e insossas.
Estamos a passar, como reparam, do jardim de infância ao ensino básico... Mas se é básico é porque com ele se aprofundam as bases do conhecimento. Então, se olharmos com atenção, temos razão para dizer que...
A escola faz mal às crianças quando as deixa ter aulas ou de manhã ou de tarde. Todos somos mais inteligentes de manhã. Porque somos animais sensíveis à luz... É por isso que as aulas de tarde incentivam o insucesso escolar. E faz mal quando se deixa que o dia escolar comece com a educação física, por exemplo, e termine, já com os crianças fisicamente cansadas, com o português. Isto é: uma parte da distração dos alunos resulta da forma, muitas vezes sem sentido, como se organiza um dia de aulas.
A escola faz mal às crianças quando elas estão tempo de mais na escola, com aulas expositivas que nunca mais acabam, e com recreios “supersónicos” de dez minutos. Mais tempo de escola tem-se traduzido em melhores resultados escolares? Não!!! Veja-se, por exemplo, os mais diversos exames nacionais. Mas, então, são os alunos que não prestam, são os professores que os atropelam, são os pais que os infernizam ou é o sistema que ignora a sua sabedoria, que insiste em não perceber como eles pensam e insiste em premiar, unicamente, aqueles que reproduzem e que repetem (isto é, os “macacos de imitação”)? Menos escola será pior escola? Não! Eu não acho que as crianças não devam trabalhar! Acho, isso sim, que brincar rima com aprender e não é por se trabalhar mais horas que se aprende melhor. Aliás: acho que estamos a pôr todas as “fichas” do crescimento das crianças na escola, dando-lhe mais importância do que ela merece: a família é mais importante que a escola e brincar é tão importante como aprender. Escola e mais escola, sem família e sem brincar, é imaginar um crescimento onde a escola não dá vida mas dá, antes... “vistos gold” (com as consequências que todos conhecemos noutras áreas...). Atenção: estamos a transformar as crianças em burocratas de mochila; e isso é mau! Porque as tomamos como se, com isso, elas não fossem capazes de compatibilizar a vida familiar com o trabalho, a vida social com o desporto e com os amigos, os seus amores, com os sonhos e com o futuro. Ora, se elas não têm uma vida plural nos seus desafios, estamos a criar crianças... frágeis! Dar demasiada importância à escola é imaginar que a vida só se aprende nos livros, e que a “escola da vida” (que acarinha os erros e os enganos) não é a fonte de sabedoria que, de facto, ela é! Mais ainda: é esquecer que os avós sabem sempre mais que os livros; que os pais nunca têm todas as soluções mas encontram respostas únicas e engenhosas; que os professores se tornam desafiantes não tanto quando fornecem as soluções mas sempre que, de olhar matreiro, põem problemas; e que os amigos e os recreios são, eles próprios... uma “escola”! Escola são os avós, os pais, os professores, os amigos, os livros, as aulas e a vida todos misturados e todos diferentes.
Mas a escola faz mal às crianças quando imagina que elas tenham de fazer parte dum mesmo grupo de meninos entre o jardim de infância e o 9º ano de escolaridade, pelo menos. Ao contrário disso, eu acho que as crianças não são de porcelana: ao fim de um ano letivo, cada grupo deve baralhar-se, dividir-se em quatro e “voltar-se a dar”, com outro professor (ou, de preferência, com outro par educativo). Um sistema educativo assustado com a mudança não é amigo da escola nem da vida: transforma meninos saudáveis em crianças “imunodeprimidas”: intolerantes à frustração, desconfiadas diante da diferença e debilitadas diante do amor pela vida.
A escola faz mal às crianças quando as poupa à crítica e não as corrige, ao mesmo tempo que as escuta. Mas porque é que dizer a uma criança que fez mal se tornou um pecado? Ou que se enganou ou que pode ser melhor, que pode ser mais afoita, mais acutilante, mais educada ou mais arrojada? Mas quem é que inventou que isso as traumatiza?... O traumatismo são ressentimentos que se guardam; nunca dores que se partilham! Ainda assim, a escola faz mal quando só as reprova a elas, sempre que as crianças têm desempenhos negativos. E quando não questiona os pais e os professores que necessitam de planos educativos individuais; as escolas com défices de atenção, onde elas estão; as direções de escola hiperativas (com as quais têm de conviver todos os dias); e um ministério com (muitíssimas!) necessidades educativas especiais mas que, contra todas as evidências, tem de si a ideia dum sobredotado.
A escola faz mal quando distingue ensino regular e ensino especial, imaginando que umas são crianças de primeira e as outras têm necessidades educativas especiais. Todas as crianças têm sempre uma ou outra necessidade educativa especial e, todas elas, ganhavam se tivessem planos educativos individuais!! Mesmo as crianças certinhas? Sobretudo essas, tão queridas da escola. Na verdade, são certinhas porque são tristonhas. Já não falando das crianças exemplares que só o são porque têm pais autoritários, hostis ou, até, tirânicos. Fazer, no entanto, da educação especial uma espécie de enclave dedicado a crianças, supostamente, “atrasadas mentais” é que não! Em vez de tornar a escola inclusiva, exclui, etiqueta e descrimina!
A escola faz mal às crianças quando se preocupa a identificar autismos, dislexias, défices de atenção, síndromes de Asperger ou hiperatividades em vez de perguntar porquê! Por que é que uma sociedade que diz de si própria ser amiga do conhecimento faz com que, mal chegam às aulas, permite que as crianças, os pais e a escola, ela própria, deixem de perguntar: “porquê?... Porque é que mal as crianças têm um insucesso há sempre dois “porquês oficiais”: ou os pais discutem e estão a divorciar-se ou elas têm um defeito de fabrico?.... Então, e o modo como a escola está organizada, não é importante? E a forma como um professor (ou outro) estão de “candeias às avessas” com o ensino, não interfere na aprendizagem? Não é batota supor que os alunos, que lidam com a linguagem matemática de forma excelente (quando jogam num computador, por exemplo) sempre que têm insucesso na matemática, a culpa seja sua e de mais ninguém, nunca se questionando os professores de matemática, os professores que formam os professores de matemática, ou os programas de matemática, a didática e a pedagogia com que se fala de matemática? Uma escola pouco amiga dos porquês não é uma escola: é (desculpem!) uma tecnocracia amiga da estupidez, que pega nas crianças e as transforma em jovens tecnocratas de fraldas; depois, em jovens tecnocratas de mochila; mais tarde, em jovens tecnocratas que, à falta de mundo, se exibem no Facebook; para que, transformando alguns deles em jotas, passados uns anos tenhamos uma classe política que, muitas vezes, compensa com “equivalências”... a falta dum ofício, a falta de sabedoria e a falta de vida que foi tendo.
A escola faz mal às crianças quando permite que algumas escolas privadas sejam batoteiras!! E por mais cristãs que sejam escolham os alunos, à entrada. E sempre que um aluno tem dificuldades o convidem a sair. E logo que ele enviese os rankings o reprovem, para que as médias não se... constipem.
A escola faz mal às crianças quando permite, sem nunca perguntar porquê, que exista uma “epidemia atípica” de explicações. E faz mal quando utiliza a caderneta do aluno para se fazerem queixinhas e se repreenderem os pais. Ou, pior, para que depois de se desculparem do número excessivo de alunos por turma, existirem professores que acabam a passar trabalhos de casa para os pais! Ou, contra a sua vontade e traíndo a sua sensatez, acabam a passar trabalhos de casa em versão XL, simplesmente.
E faz mal, ainda, quando permite que muitos professores de escolas privadas vivam a escola sob coação. E sejam repreendidos quando são justos nas avaliações. E tenham de pôr pó de arroz nas notas porque há um colégio, ali ao lado, onde todas as crianças são, supostamente, sobredotadas. E tenham de as sinalizar, em fevereiro, para o ensino especial, para que não corram o risco de ser repreendidos, pelos seus diretores, se elas tiverem um nível ou outro abaixo da expectativa dos pais, em abril ou em maio. E fazem, ainda, mal sempre que algumas dessas escolas só aceitam ou rapazes ou raparigas, unicamente para que as crianças não se distraiam... (Não se estará, com isso, a sexualizar a vida para além do razoável?...) E outras que não ensinem o português ou a história de Portugal, mesmo que funcionem em Lisboa ou no Porto, porque são internacionais. Mas, afinal, quem pratica mais bullying na escola: os alunos, entre si, ou, sobretudo, quem a devia dirigir e quem se abstém de a regulamentar?
Talvez tenhamos, hoje, as melhores famílias que a humanidade jamais criou, as escolas mais plurais e mais atentas, e a mais fabulosa enciclopédia do mundo (que é a internet)! Mas, por nossa omissão, receio que estejamos a fazer mal ao crescimento das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Porque eles foram poupados, felizmente, a condições de vida muito difíceis e foram poupados à morte e ao sofrimento banais. Mas, por isso, é urgente que elas desenvolvam, também, competências para o insucesso.
Para que serve, afinal, a escola? Para dar conhecimento? Não! Para aprender a procurá-lo!! E para acarinhar o erro!!!!!!!!! Serve para informar? Não! Serve deixar que a crianças a recrie e se recreiam com ela; porque quem não recria e não recreia nunca aprende! Serve para perguntar: “Professor, posso pôr uma pergunta?” Não! Porque, ao contrário do que muitos acham, o contraditório não é (nunca é) um delito de opinião. Mas é, simplesmente, o melhor amigo da dúvida com que se rasga mais uma avenida nova no conhecimento!
A escola serve para sentir e para imaginar. Serve para abstrair e sintetizar. Serve para discorrer e para pensar. Serve para educar para a humanidade. E serve, também, para acarinhar os afoitos, os arrojados, os desafiantes, os atrapalhados, os engasgados e os insubmissos. Serve para distinguir os sabidos, dos sabichões e dos sábios. Serve para fazer com que as crianças não sejam nem simplistas nem simplórias mas que percebam que a simplicidade é sempre (e só) uma consequência da sabedoria. A escola serve, finalmente, para preservar as qualidades com as quais as crianças lá chegam: serve para as manter tagarelas, serve para as proibir de brincar com iPads, enquanto elas não descobrirem os intestinos das coisas e enquanto não se sujarem. Serve para manterem a cabeça no ar (enquanto põem os pés na terra). Serve para usarem o nervoso miudinho com que alimenta o bicho carpinteiro com que se experimenta sempre que se aprende. E serve para perguntar porquê.
A escola serve para nos pôr problemas: nunca para os resolver. E é aqui que eu acho que passamos o tempo a dizer aos nossos filhos que a vida é fácil e, mais tarde ou mais cedo, eles sentem que foram enganados. As escolhas fáceis são o caminho mais curto para ficarmos burros mais depressa! Porque a vida é resolver problemas e, de complexidade em complexidade, à medida que os transformamos em sabedoria, nos tornarmos mais simples.
A escola é uma fábrica de sonhos. Mas serve, sobretudo, para não aceitarmos o sonho como um papel de parede. O sonho é, antes de tudo, uma janela que se insinua onde, antes, estaria, unicamente, uma parede. Peço, por isso, a todos os educadores e a todos os professores − porque talvez tenham a profissão mais próxima que existe da magia − que derrubem paredes, que tracem janelas mas (mesmo que vos desconsiderem, muitas vezes) peço-vos que sonhem! Porque é, sobretudo, com os vossos sonhos que um pouco mais de luz chega, todos os dias, a todas as crianças! E é com eles que todas elas ligam desassossego e confiança e, no seu faustoso fervilhar, ao mesmo tempo que pulam e avançam, vos perguntam uma e outra, e mais outra vez: falta muito p’ra chegar?...
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